Falando sobre “Recriações tradicionais no cenário contemporâneo” na manhã desta segunda-feira, 11, no Pavilhão Cultural do Recinto de Atividades Folclóricas “Professor José Sant´anna”, a palestrante Érica Giesbrecht, acadêmica da Universidade de São Paulo-USP, disse que nos tempos atuais, já não dá mais para confinar as manifestações culturais e de raiz apenas em seu nicho de origem, defendendo a necessidade de expandi-lo para outros polos e por outros meios, que não apenas o tradicional.

Érica pregou o fim daquilo que o criador e principal mantenedor do Festival do Folclore de Olímpia até sua morte, José Sant´anna, tinha de mais caro: a não influência do “moderno” nas manifestações de raiz, de maneira a descaracteriza-las no que têm de essencial.

Para ela, “são momentos diferentes” estes que vivemos hoje e aqueles em que o professor lançou o Festival e espalhou seus ensinamentos. “O professor Sant´anna é uma pessoa essencial e fundamental naquilo que fez para ensinar do jeito que ele ensinou. Ninguém pode tirar-lhe este mérito. Mas ele estava num outro momento”, analisou a estudiosa.

Érica Giesbrecht é graduada em Ciências Sociais, mestre em Antropologia Social e doutora em Música pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com estágio no exterior em Etnomusicologia na Queens University – Belfast. Desde 2012 é pós-doutorado em Antropologia Visual pela Universidade de São Paulo, USP. Em ambas as instituições de ensino, desenvolveu atividades didáticas (cursos de graduação e pós-graduação) e pesquisa na área de Etnomusicologia, sempre voltada para o universo tradicional afro-brasileiro, pelo viés do corpo, memória e da performance musical.

É autora do livro “A Memória em Negro: Sambas de Bumbo, Bailes Negros e Carnavais construindo a comunidade negra de Campinas”, que resultou de um prêmio PROAC (Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo), para Promoção da Continuidade das Culturas Tradicionais (2010). Atualmente, como principal produto de sua pesquisa de pós-doutorado, dirige documentário sobre personagens negros da cidade de Campinas, com idades entre 70 e 90 anos, buscando uma narrativa audiovisual de suas memórias musicalmente incorporadas.

Leia abaixo a íntegra da entrevista que ela concedeu ao blog logo após sua explanação, começando por responder exatamente o questionamento feito sobre a “modernização” do Folclore, ao que Sant´anna sempre reagia com indignação.

Érica: Acho que o professor Sant´anna, quando começa, há 50 anos atrás, ele tem uma outra missão, é um outro momento. É um momento em que a vara está torta para a esquerda, e ele precisa puxar para a direita, não dá para puxar para o meio, tem que puxar para a direita totalmente. Há 50 anos atrás, a gente não tinha uma série de coisas que temos hoje.

E ele precisava despertar um interesse de outra maneira. Hoje as coisas são diferentes. Talvez se ele estivesse aqui hoje, ele concordasse que é interessante quando alguém tira foto das crianças e manda no whatsapp, eu não sei qual seria a reação dele. Mas o que é interessante e o que é louvável no momento em que ele fez, é o que ele fez.

Um momento em que as pessoas precisavam aprender o que era este Folclore, o que eram estas tradições, essa cultura. Hoje o mundo está tão diferente, hoje temos política de salvaguarda, hoje temos as intervenções da Unesco, intervenções do IPHAN, falando sobre estas manifestações que são locais, que são mantidas por comunidades. O mundo mudou, o mundo já não pensa mais no Folclore nacional. O nacional acabou.

Hoje é um mundo em que as pessoas podem tomar os discursos para si. E podem falar a partir dos seus lugares. Então, eu acho que ninguém tem o direito de virar para uma pessoa como Raquel Trindade (escritora, artista plástica, coreógrafa e folclorista brasileira, citada para exemplificar a aceitação do “moderno” na tradição folclórica) e dizer “a senhora está errada”.  Só negro deveria fazer maracatu, quando ela reconhece que este mundo mudou e que outras pessoas estão fazendo, que a tradição está andando, quem é a gente para falar alguma coisa?

Então, são momentos diferentes, o professor Sant´anna é uma pessoa essencial e fundamental naquilo que ele faz para ensinar do jeito que ele ensinou. Ninguém pode tirar-lhe este mérito, mas ele estava num outro momento. Talvez hoje concordasse com a Raquel.

Blog: Tem uma questão que ele pregava que é a inserção de recursos eletrônicos nas apresentações. Sempre exigia que o grupo fizesse sua música. E o que você propõe é diferente disso?

Erica: Tem aquela história da música cubana. A Salsa se congelou para fora de Cuba, e quando os músicos cubanos começam a apresentar o que eles faziam na ilha e ninguém sabia por causa do embargo, essa Salsa estava totalmente transformada. É muito ingênuo a gente pensar que as tradições não mudam. Se você deixar ela ali, num cantinho, num povoado, a cada dia eles vão fazer diferente. Olha, performance é uma coisa, é a repetição do inédito.

Nunca você vai fazer igual. Porque a gente tem que se prender a coisas que só congelam? Porque a gente não pode admitir que estas coisas continuam, o sentimento de pertença, a busca da ancestralidade, a conexão com o passado? Porque a gente não pode admitir que elas acontecem apesar das nossas caixas-pulseiras de metal, apesar do whatsapp, apesar do CD, apesar….

Continua, não é isso que vai corromper. O que corrompe é quando você começa a parar de aceitar as diferenças. É quando você começa a achar que domínio público tem dono. Isso corrompe. Quando você deixa as coisas livres, quando você orienta, quando você explica, você deixa as pessoas se apropriarem da história do jeito que elas entendem. Isso é tão mais rico!

O Importante é entendermos que houve a importância da manutenção, houve o momento, mas que a gente ganha muito mais se a gente se abrir para outras formas de expressão.

Blog: Essas comunidades que a Alessandra (Ribeiro Martins, outra palestrante do dia) citou, pelo que ela colocou, parece que vai num sentido inverso deste que você prega. Ou não?

Erica: Não. Eles (a comunidade de Jongo da qual Alessandra faz parte) são exatamente o contrário, eles têm centro de tecnologia, eles têm uma sala com 10 computadores, todos com Linux, ensinam a molecada acessar e dão curso para quem quiser na comunidade. Têm mulheres tocando tambor. A comunidade é tão livre, tão aberta para aceitar coisas novas como qualquer outra. Pensa no turismo, pensa nessa possibilidade de ensino, admite que o Jongo é bisavô do funk! Imagina! Será que teve gente que se revirou no túmulo?

Blog: Com certeza.

Erica: Mas é! A batida é muito parecida. E ela não está dizendo “olha, começo enganando eles que é funk”, não, ela fala “a batida está lá”. Isso é admitir que há algo muito mais poderoso que não deixar sistema de som, e achar que esta coisinhas é que vão fazer a tradição morrer. Tradição não morre. Está dentro de cada um.

Blog: Uma outra questão, e aí evocando novamente o professor Sant´anna: quando as pessoas comentavam com ele, talvez até inadvertidamente, “professor, precisamos modernizar o Festival do Folclore”, ele se arrepiava todo. Mas, pelas suas colocações aqui, é mais ou menos isso, então? Você entende que é possível essa “modernização”?

Erica: É uma “modernização” de meios, mas não é uma “modernização” de conteúdos. É só entender que não deixa de ser. As coisas mudam. As coisas são dinâmicas. Você não é o mesmo todos os dias. É aquela famosa colocação de Heráclito (filósofo pré-socrático considerado o “pai da dialética”): “O homem não se banha duas vezes na mesma água”. Porque já correu e o homem já é outro.

Se nós somos diferentes todos os dias, porque a gente tem que se prender a coisas que não são presas? Na sua essência não são presas. Como você vai prender a expressão humana? Assim, em conteúdo, em sentimento, em ancestralidade, entrega pessoal àquilo que se está fazendo, não mudou nada. Botar um CD não muda “porcaria” nenhuma. Continua o mesmo.

Blog: Não perde a essência?

Erica: Não! Essência não é a pratinela do pandeiro. Essência está na alma de quem está tocando. Isso não se perde por causa de um amplificador.

Blog: Mas o objetivo não é a transmissão do conhecimento, a transmissão da ancestralidade, da cultura, e uma vez que você espetaculariza isso, não perde este sentido?

Erica: O espetáculo é uma coisa engraçada. Espetáculo é uma coisa para se assistir. Se você pensar no festival inteirinho, o Festival tem palco. Por que o Festival tem palco? Tudo que está em cima do palco é espetáculo. Então arranca todo mundo do palco e começa a fazer tudo no chão. Entende? Espetáculo é quando você não deixa a plateia participar.

Então, de repente você pode ter uma coisa superelaborada, mas só que faz no chão que todo mundo entra! Espetáculo é a separação de quem está fazendo a performance e o público. Então, se realmente o Festival está preocupado com isso, tira o palanque! Deixa as manifestações no chão. Deixa um tempo para que as pessoas aprendam como é que era e deixa as pessoas entrarem juntas.

Espetáculo é o jeito de você fazer. Não é a coisa em si. Espetáculo é quando você decide quem é o dono da apresentação. Quando você rompe com isso, não importa se é florzinha de plástico ou de crepom. Não importa se é CD. Você tirou o espetáculo, você conseguiu fazer uma comunhão.

Até.