Reza a lenda que certa vez um menino, de nome joãozinho, queria muito possuir uma bicicleta. Todas as noites ele rezava para Deus lhe conceder esta graça. Foram muitas e muitas noites rezando e pedindo a Deus a graça. Religioso que era, Joãozinho procurava sempre seguir os mandamentos divinos, e sempre estava de posse da Bíblia Sagrada, lendo ali os tais mandamentos. Uma noite, porém, acabou por descobrir que os desígnios de Deus são misteriosos, e que Deus, na sua infinita sabedoria, escreve certo por linhas tortas.

E o que fez, então? Saiu de casa e furtou a primeira bicicleta que viu pela frente. Depois do feito, passou noites e noites rezando ao pé da cama e pedindo a Deus que o perdoasse. Tanto rezou, tanto pediu, que acabou recebendo o perdão. A partir daí, então, Joãozinho viveu feliz para sempre. Feliz com sua bicicleta, abençoado com o perdão divino.

Trata-se, naturalmente, de uma blague, uma piada herética, não há dúvidas. Mas, não é certo que sempre temos a nítida impressão de que vivemos esta situação todos os dias, diante das coisas que presenciamos, que ouvimos falar, que lemos, assistimos ou ouvimos por meio dos veículos de comunicação? A prática do roubar, roubar, roubar, e depois correr para uma igreja qualquer, ou a todas, se oportunidades tiver, e pedir perdão a Deus, como fez Joãozinho?

Espantoso é descobrir a denúncia destas espertezas no “Sermão do Bom Ladrão”, do Padre e escritor sacro português Antônio Vieira, de Caucaia, escrito em 1655 – vejam a percepção deste homem, que de antanho já vislumbrava o que hoje se chama, nos meios políticos, de rapinagem deslavada. “Basta Senhor que eu porque roubo em uma barca sou ladrão e vós porque roubais em uma armada, sois Imperador? Assim é”, constatava o padre. “Roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza”, acrescento, extraindo o texto de um post na internet.

Mas, Padre Antônio Vieira vai mais fundo: “Hoje se conjuga todos os modos do verbo roubar. Porque com toda certeza está se furtando pelo modo imperativo, pelo modo mandativo, optativo, conjuntivo, permissivo, infinitivo e pelo potencial. E se mais não furtam, é porque mais não há.” 

E observem esta parte do longo texto do sermão: “O que entra pela porta poderá vir a ser ladrão, mas os que não entram por ela já o são. Uns entram pelo parentesco, outros pela amizade, outros pela valia, outros pelo suborno, e todos pela negociação. E quem negocia não há mister outra prova: já se sabe que não vai a perder. Agora será ladrão oculto, mas depois ladrão a descoberto”.

Esta visão tão atinga do padre santo parece, hoje, pensamento comum entre os viventes desta sociedade capitalista. Todos querem ter, o ser não importa agora. Porque à lá Joãozinho, acreditam bastar depois um pouco de preces com pedido de pedão a Deus.

Talvez isso justifique a tão profícua falsa fé professada pelos políticos de modo geral. O falso sentimento pelo outro, a falsa lágrima derramada. a falsa humanidade. Surrupiam o que é possível do alheio durante o dia, para a noite rezar a Deus. Pensam estar lavando a alma sob a luz Divina, para sujá-la nas próximas horas, sob a escuridão demoníaca. Haverá um juizo final? Já que parece não haver juizo legal para por fim a tanta dasfaçatez. Valha-nos Deus!

Até.